Índia Morena
Cidade: Jaboatão
Atividade/expressão cultural: circo
Ano de registro de patrimônio vivo: 2006
Contorcionista, trapezista voadora, acrobata, cantora, ginasta, atriz circense. Eis aí alguns dos atributos da grande dama do circo pernambucano: Margarida Pereira de Alcântara. Ou, Índia Morena, nome artístico deliberadamente escolhido por serem índios o pai e a avó paterna. Destacada pela dedicação profissional exclusiva à vida circense, Margarida convive desde os dez anos com o magnetismo do mundo dos mágicos, palhaços, humoristas, rola-rola, malabaristas, equilibristas. Na verdade, a estréia na vida artística foi inaugurada, a partir de 1952, em shows de calouro, nas matinês infantis promovidas pelo Circo Democratas, que aconteciam na Vila de São Miguel, bairro de Afogados, Recife, onde àquela época o circo estava montado. Aos doze anos, a cantora mirim já interpretava, com alma, canções de Vicente Celestino, Ângela Maria, Núbia Lafayete.
Filha de Eloy Pereira de Alcântara e Maria das Dores de Alcântara, Margarida nasceu no Recife, em 13 de julho de 1943. Órfã de pai aos nove anos, interrompeu os estudos no terceiro ano primário e não havia grande expectativa de desenvolvimento profissional, sequer de realização artística, para essa criança nascida e criada dentro da maré, pescando crustáceos nos mangues de Afogados para ajudar na sobrevivência da família. Adotada por Severino Ramos de Lisboa – o palhaço Gameloso – e afilhada de crisma de Maria Tenório Cavalcanti – a dona do antigo circo Itaquatiara Real, no qual Índia se engajou a partir de 1º de julho de 1953, contra a vontade materna –, essas confluências resultaram, claro, do talento evidente da jovem circense e contribuíram para o florescimento de singular trajetória artística. E, mais, vieram acrescentar novos elementos à história dos circos populares do Brasil.
Além de realizar viagens pelos Estados Unidos, Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia, trabalhando em diversos circos – dentre os quais o Gran Bartolo, o Garcia, o Itaquatiara, o Edson, o Águia de Prata, o Coliseu Mirim, o New American Circus –, Índia Morena organizou, com a participação de Albemar Araújo, a coletânea Dramas Circenses, em que foram transcritos seis tradicionais dramas encenados nos circos populares, tais como A louca do Jardim e Lágrimas de Mãe. As peças teatrais, cedidas por Índia, fazem parte do acervo da Associação dos Proprietários e Artistas Circenses do Estado de Pernambuco (Apacepe), organização fundada em 1993 por Índia Morena e pelo marido, Maviael Ribeiro de Barros. O livro, contendo 161 páginas, foi publicado em 2006, pela Fundação de Cultura Cidade do Recife.
Índia Morena considera o circo “o palácio onde vive com alegria” desde os treze anos, quando decidiu largar totalmente a mãe e entregar-se de vez ao picadeiro: passou no teste de caloura e foi contratada para trabalhar no Itaquatiara. “Ali eu vi o mundo”: foi assim que nasceu para a vida artística, ao mergulhar desde a primeira vez na lona de um circo e depois sagrar-se como trapezista voadora e melhor contorcionista pernambucana. Depois do Itaquatiara, trabalhou como ginasta e cantora num circo de Olinda, o Circo do Palhaço Violino. Atuou no Circo Águia de Prata, de propriedade de Euclides Águia de Prata que, depois, passou a ser o Circo Edson. Ainda participou do Coliseu Mirim, pertencente a um funcionário da prefeitura do Recife, conhecido por Benigno. Em meio ao talento e à dedicação integral à carreira, ia consolidando-se um contínuo processo de aprendizagem no próprio meio circense, a partir do convívio com grandes nomes do circo e da ousadia de cada nova experiência. Entretanto, em meio aos prazeres e conquistas da biografia artística, um grande desgosto na vida de Índia Morena quase a leva à bancarrota: a traição do ex-marido com uma menina de circo resultou em doença e lesão pulmonar, com prolongado internamento no hospital Otávio de Freitas. Foi aí onde conheceu o atual marido, que nada sabia de circo e, entretanto, aceitou abraçar o ofício, acompanhando-a ainda hoje.
Desde 1977 possui, com Maviael, o Gran Londres Circo, pois o antigo proprietário do Circo Edson, falido, e para quem Índia Morena trabalhava, doou parte do negócio a título de pagamento pelos serviços prestados por ela à companhia circense. Índia nele injetou experiência e recursos próprios e é no Gran Londres que, desde essa época, vai exibindo as múltiplas habilidades aprendidas em todo o percurso artístico, cantando e apresentando os espetáculos. Em meio a uma trupe com mais de vinte integrantes, contracena com um palhaço cantor e compositor de músicas irreverentes, com equilibristas, contorcionistas, transformistas, engolidores de faca, malabaristas, pernas-de-pau, escada giratória e mais quatro palhaços. A temporada em cada local é variável, conforme a aceitação do público. Os espetáculos são geralmente noturnos, mas há também matinês nos finais de semana e feriados. A folga é sempre na segunda-feira.
O Gran Londres, itinerante como deve ser todo circo de tradição, circula sobretudo pelos arredores do Recife e Região Metropolitana, a exemplo de Jaboatão, Paulista, Abreu e Lima. Aonde o circo vai, agrega as bandas de música locais, fisga o público com espetáculo circense tradicional e ainda oferece uma atração única: um bode pagador de promessa, que sobe uma rampa, ajoelha-se e beija uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil. “Eu só tenho o terceiro ano primário, mas, quem tem o primeiro ginasial, não vai comigo, não, porque eu aprendi muita coisa em teatro”, vangloria-se a artista, que também não esquece a dureza da infância mergulhada na lama catando caranguejo. Apesar de todas as mazelas, Índia segue cantando e louvando a magia do circo, com a elegância e o magnetismo próprios de uma grande dama circense.
Fonte: Amorim, Maria Alice (2014), Patrimônios Vivos de Pernambuco; 2. ed. rev. e amp – Recife: FUNDARPE
