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Cultura.PE

Sociedade Musical Curica

Cidade: Goiana
Atividade/expressão cultural: banda musical
Ano de registro de patrimônio vivo: 2005

Eric Gomes

Curica, do tupi ku’rika, é pássaro de canto estridente, da família de papagaios e araras, que canta pelas matas da Amazônia. Talvez por isso o nome da centenária sociedade musical goianense, numa alusão ao papagaio trombeteiro. Melhor explicando, existem, de fato, duas versões que apontam tal escolha para o nome da banda, fundada em 1848. Segundo uma delas, a senhora chamada dona Iria perguntou ao mestre João José, que passava pela rua da Conceição: “Seu João, por que é que a música grita tanto, que até parece uma curica?” A outra versão, variante da primeira, conta que dona Iria era irmã do padre José Joaquim Camelo de Andrade, e morava à rua Direita, em companhia das próprias escravas. Estando, certa vez, na porta de casa, o maestro José Conrado executava uma polca do musicista Francisco Tenório, e ela teria dito, em voz alta, a uma de suas escravas: “Ô Rosa, aquela música só parece dizer cu-ri-ca-cá”. A outra respondeu com uma gargalhada, e assim ficou o apelido que, supõe-se, era usado em tom depreciativo.

A Sociedade Musical Curica oferece, justamente por ser antiga, um repertório de tradições, de histórias contadas pelos mais velhos, dentre eles os nonagenários Antônio Secondino de Santana, Meia Noite, e João José da Silva, Calixto, dois dos mais antigos participantes da banda – falecidos após a banda conquistar o título estadual de patrimônio vivo, concedido em 2005. Uma dessas histórias diz respeito a uma tocata para o Imperador. Conforme consta nos anais de Goiana, a Curica, sob a regência do mestre Ricardinho, participou das festas em homenagem a D. Pedro II, durante visita à cidade, em 6 de dezembro de 1859. Quatro dias depois, ou seja, 10 de dezembro, o Diario de Pernambuco noticiava a visita da autoridade máxima do país e dizia que a Guarda Nacional “esteve reunida com mais de 700 praças e boa música”. A Curica, naquele período, era a banda do batalhão.

Com um repertório musical cheio de sofisticação e variedade, o grupo também marcou presença nas comemorações da Abolição da Escravatura, da Proclamação da República, ajudou em campanhas políticas do Partido Conservador e, então militarizada, fez parte da Guarda Nacional. Criada com o objetivo de realizar tocatas em festas religiosas, a banda foi fundada em 1848, por José Conrado de Souza Nunes, primeiro regente do grupo musical. Do Rio Grande do Norte, era conhecido como o filho do marinheiro Boca de Cravo. Segundo o historiador Álvaro Alvim da Anunciação Guerra, cujo pseudônimo era Mário Santiago – conforme pesquisado e publicado, na ocasião do centenário, em 1948, no livro Elementos para a história da Sociedade Musical Curica – tudo começou com um grupo de 12 a 15 músicos que se reuniu no consistório da igreja de Nossa Senhora do Amparo dos Homens Pardos e resolveu criar uma orquestra sacra, apresentando-se pela primeira vez numa tocata, no Amparo, durante as comemorações da natividade de Nossa Senhora, ou seja, no dia 8 de setembro de 1848. À época da fundação era chamada de corporação musical. Assim começa a história da Curica, a mais antiga banda de música, em atividade ininterrupta, do Brasil e da América Latina.

O abolicionista e senador do Império João Alfredo Correia de Oliveira dá notícia, na biografia que escreveu sobre o 2º Barão de Goiana – Bernardo José da Gama –, que “cada partido tinha a sua banda de música a estafar-se em ajuntamentos e passeatas”. Deduz-se que a outra banda era a rival Saboeira, de 1855, ainda em atividade, fundada com o objetivo de acompanhar o Partido Liberal, oposicionista do Partido Conservador, ao qual pertencia a Curica. As histórias da inimizade figadal entre as duas bandas foram escritas com sangue. Entre pontapés e lances de capoeira, gritava-se: “Viva a Curica! Morra a Saboeira!” E vice-versa. Em 1928, visitou a capital da Paraíba, o que teve enorme repercussão na imprensa local. Entre os sócios honorários, constam os nomes do então presidente Getúlio Vargas e de Flores da Cunha, interventor no Rio Grande do Sul. Durante a 2ª Guerra Mundial, participou de passeata antinazista em agosto de 1942.

No dia 1º de dezembro de 1944 recebe a visita do famoso musicólogo uruguaio, professor Francisco Curt Lange, que, demonstrando grande interesse pelos arquivos de composições musicais, obteve uma relação das peças escritas no século 19, mais uma fotografia da corporação. A banda executou, em homenagem ao visitante, a Sonata Patética, de Beethoven; a valsa Obstinação, de Nelson Ferreira, e o dobrado Conselheiro João Alfredo. Na data do centenário, em 1948, Antonio Correia presenteou a Curica com uma sede própria, a mesma onde o rupo desenvolve as atividades até hoje, à rua do Rosário. Naquele ano, a banda também decidiu criar estatuto próprio, ainda em vigor, em que se estabelecia a fundação de uma escolinha de música, a fim de gratuitamente serem transmitidos os conhecimentos musicais, pelos mais antigos, para as novas gerações. De meados de 1960 a 1970, a banda manteve uma formação denominada Curica Jazz, que é retomada no início de 2009. São 29 componentes, escolhidos entre os mais talentosos alunos da escolinha e integrantes da banda. Em meio às novas realizações, a diretoria está organizando o primeiro registro fonográfico, tanto da banda, quanto da jazz, para a gravação de dois CDs a serem lançados ainda em 2010.

A Curica é um dos grandes patrimônios culturais de Goiana e sempre marca presença em solenidades cívicas e religiosas, inclusive nas viagens pelo Brasil. No Carnaval, subdivide-se em duas orquestras de frevo, para tocar no centro, nos distritos e vizinhança. Em variados eventos e inaugurações, apresenta-se sob a forma de orquestras menores. O acervo musical conta com mais de 800 títulos, de todos os gêneros, entre clássicos, barrocos, dobrados, marchas de procissão, músicas religiosas, MPB, para execução por cerca de 60 a 70 músicos. A catalogação do arquivo histórico e musical foi realizada pelos estudantes da escolinha, em regime de voluntariado. Resultante de um trabalho filantrópico de maestros, diretores e instrumentistas, a banda é responsável pela contínua preparação de novos artistas, pela renovação dos próprios integrantes e traz no histórico a passagem de nomes consagrados, como o famoso capitão Zuzinha, ou José Lourenço da Silva, e os maestros Duda e Guedes Peixoto. É inegável que a Curica tem colaborado com o despertar de talentos, com a formação de músicos. E mais: toca a sensibilidade dos goianenses que a veem passar pelas ruas, despertando-lhes o amor à música e às vivas tradições da cidade.

Fonte: Amorim, Maria Alice (2014),  Patrimônios Vivos de Pernambuco; 2. ed. rev. e amp – Recife: FUNDARPE