Pular a navegação e ir direto para o conteúdo

O que você procura?
Newsletter

Notícias cultura.pe

Fabiana Moraes lança luz sobre o olhar subjetivo no jornalismo

Jornalista promove o lançamento do seu novo livro, Nascimento de Joicy – Transexualidade, jornalismo e os limites entre repórter e personagem, na capital pernambucana nesta terça-feira (12), às 19h, na Livraria Cultura do Paço Alfândega

Rodrigo Lobo/Divulgação

O livro da jornalista é fruto de uma série de reportagem publicada, em 2011, no JC

Michelle Assumpção

O livro Nascimento de Joicy – Transexualidade, jornalismo e os limites entre repórter e personagem, da jornalista e socióloga pernambucana Fabiana Moraes, será lançado nesta terça-feira (12), no Recife (Livraria Cultura do Paço Alfândega), às 19h. Na ocasião, haverá sessão de autógrafos e um bate-papo com a autora e três convidadas: Joicy, cabeleireira trans, personagem da reportagem O nascimento de Joicy, Maria Clara Araújo, mulher trans, estudante de Pedagogia da UFPE, conhecida por ser uma das 95 transexuais autorizadas a usar o nome social no Enem 2014, e Viviane Vergueiro, transfeminista e pesquisadora na área de gênero pela UFBA.

É o quarto livro da jornalista, mas ela sente como sendo o primeiro. Fabiana escreveu Os Sertões (2010), Nabuco em pretos e brancos (2012) e No país do racismo institucional (2013), todos frutos de reportagens especiais. O Nascimento de Joicy, no entanto, foi além da reportagem publicada no Jornal do Commercio (JC), onde ela é repórter especial. A reflexão sobre a relação – na maioria das vezes, conflituosa – desenvolvida com sua personagem, demandou capítulos a mais. Não é uma questão de contar os bastidores de uma notícia, mas de pensar sobre um jornalismo mais subjetivo, onde noções aprendidas na faculdade, tais como o que é notícia, hierarquização das informações, as indefectíveis perguntas (quem, quando, onde, como, por que?), podem e precisam urgentemente ser questionadas.

Através de uma narrativa densa, que mescla vida real e conceitos acadêmicos, e que considera os muitos outros lados de uma história, Fabiana ilumina dois temas distintos: transexualidade e jornalismo. Enriquece um debate que é urgente que seja feito a respeito dessas duas questões: no universo trans, a necessidade de se conhecer, desnaturalizar os discursos; no jornalismo, a fim de atender a urgente demanda da sociedade que anseia por mais qualidade e ética na informação.

Confira a entrevista que a jornalista concedeu ao Cultural.PE sobre a obra:

1- Este é seu quarto livro, mas você sente como sendo o primeiro. Por quê?
É que esse eu escrevi além da reportagem. A primeira parte do livro é a reportagem da série, mas a segunda é uma analise critica minha sobre minha relação com ela (Joicy), que foi uma relação conflituosa muitas vezes, dolorida, permeada por muita solidariedade, porém, também discussões feias. Eu fiquei com muita raiva. Às vezes, eu queria não falar com ela durante um bom tempo, abro o segundo capítulo falando isso. Então, o que aconteceu me colocou em situações que jornalismo nenhum vai ensinar. Na verdade, a prática da profissão vai lhe colocar continuadamente nesse tipo de desafio. Eu posso ter passado por tudo isso com Joicy, mas amanhã posso encontrar um novo personagem que vai me colocar à prova novamente, e desconstruir coisas técnicas que você, como repórter, vai assumindo.

2- A escrita dessa reportagem só começa após um longo período de apuração. Como foi a tua preparação e organização para escrever?
Eu tinha pedido licença do jornal para escrever a minha tese de doutorado. Estava em casa, mas, às vezes, era custoso, solitário… E, aí, eu já tinha vontade de fazer uma reportagem com um só personagem e eu queria escrever sobre transex, pois, eu sempre pensava como é estar num mundo com um corpo com o qual você não se identifica. Comecei a fazer umas visitas, uma pesquisa de campo. Um dia na semana, deixei a tese de lado e saí para escrever isso. Encontrei com Joicy num dia de atendimento no Hospital das Clínicas, ela ia ser a próxima. Eu não percebi que era uma mulher. Ela levantou a mão e disse: “eu sou a próxima”. E, isso, gerou em mim um interesse maior, pois percebi que as transexuais não gostavam que ela ficasse por perto. Elas não a tratavam muito bem, por não ter cabelão, brinco, batom. Isto é, a identidade do socialmente percebido como feminino, e, por isso, ela era colocada do lado. Pensei, “e ainda tem isso?”. Mas, ao mesmo tempo, ela muito segura. Uma coisa que ela tem de muito incrível é a autoestima. Comecei a conversar com ela, fui à casa da irmã. Ela vinha do município de Alagoinha. Quando esses encontros começaram a ser mais frequentes, comecei a perceber características dela, senti que não iriam ser muitos fáceis para mim. Durante essa relação comecei a acompanhar, via as coisas acontecendo. Tipo, a pessoa que ela amava indo embora, dizendo que não podia ficar com ela. Ela ficou muito mal quando ele foi embora. Chorou muito. Também nunca me coloquei como amiga, mas às vezes dizia algumas coisas. Eu não sabia que ia virar isso. Então, eu não me preparei porque eu não esperava. E quando você não se prepara o aprendizado é outro.

3- Os conceitos que permeiam a discussão do transgênero são muito novos e, mesmo entre as pessoas que respeitam e buscam entender mais este universo, ainda existem muitos erros de abordagem. Como foi para você se debruçar sobre esse tema? E como você percebe essa questão ser tratada na sociedade?
Somente nos últimos cinco, três anos, se intensificou mais. Nas universidades, a matrícula é pelo nome que a transexual ou a travesti usa, mas alguns órgãos atualmente começam a fazer isso e abre toda uma questão, mas é um tipo de assunto que traz holofotes para essa história. O Nascimento de Joicy foi a matéria que eu fiz que mais gerou identificação nas pessoas. Uma figura que muita gente não conseguia compreender, mas que, quando chegam mais perto da história de vida dela, todo mundo se identifica. E sabe por quê? Todo mundo quer ser amado, quer conforto, quer respeito. Quem não se identifica com a história de alguém que busca se colocar no mundo e que os outros a vejam de uma maneira respeitosa e querida? Eu acho que quando você fica sabendo desse tipo de história e passa a observar mais que as pessoas, trans ou não, têm vontades de vida iguais as suas, isso vai diminuindo a distância. A questão LGBT, de maneira geral, foi ficando mais palatável para um público que nem queria ouvir falar. Mas a gente ainda usa muito termo errado. Eu usei na matéria “mudança de sexo”, que não existe, é redesignação sexual, no livro eu me corrijo.

4- A literatura para o tema é acessível?
Para Joicy, eu não precisei de uma literatura. Óbvio, que depois eu fui ler sobre isso, mas acho que quando comecei a ir para a literatura, já sabia o que eu queria fazer, a matéria estava pronta. O que veio depois de Joicy é que acabou me levando para a literatura. Porque, na verdade, o que eu estudo é sociedade, consumo, comunicação, jornalismo. Eu não discutia gênero. Mas percebi que começou a vir muito com Fale com Ela, Joicy, Luisa, e fui fazendo outras, lendo coisas, era chamada a participar de bancas, mas não era o foco naquele momento. Nunca me passou pela cabeça quando eu comecei a fazer, mas depois pensei. Tenho um tio homossexual, e tenho lembranças dele desde a época de criança. Depois, com o passar dos anos, eu percebi que esse meu tio era travesti. Ele trabalhou como travesti. Fui recuperando minhas lembranças de infância e lembro que ele era alvo de piada o tempo todo. Isso nunca me veio à cabeça, mas, quando comecei a ter contato com as travestis, vi que tinha muito essa questão que eu trazia comigo, que é como você pode viver no mundo sendo constantemente questionado por sua presença.

5- O livro traz a discussão da subjetividade no jornalismo. A relação que se estabeleceu pós-narrativa te levou a outro tipo de “fazer jornalístico”. Quando você percebeu que essa história por traz da notícia era relevante e precisava ser contada?
Essa relação, que se impôs e foi construída entre nós (Joicy e eu), me colocou o tempo todo à prova como jornalista. Eu não era uma jornalista inexperiente quando encontrei Joicy. Já tinha 13, 14 anos de redação. E, isso, me fez refletir muito sobre a prática da gente, sobre como a gente faz, o que chamamos de fonte, de personagem, de jornalismo humanizado, e que virou um tanto clichê: pauta, notícia, a ideia de notícia é completamente elitizada – o que, quando, como, onde, quem – e a partir dessa relação perceber o nível de subjetividade que estava imposto. Quando resolvi escrever a matéria, o tipo de texto, queria que fosse o mais seco possível. A partir do momento em que eu escrevo que Joicy tem na geladeira um pimentão, e ela chega ao hospital, e ouve que café se toma em casa (Joicy pede um café ao seu médico, durante consulta, que lhe nega), o que eu preciso mais escrever? Ao mesmo tempo, tenho que estar atenta pra isso. Quando comecei a falar de subjetividade, sem negar a objetividade, é muito pensando nesses pormenores que se colocam.

6- O jornalismo ensina a fazer recortes de situações e realidade. A proposta da subjetividade é então ampliar e enxergar o contexto maior?
Ou, então, dentro desse recorte, você ser o mais rico possível, onde não coloque de lado questões fundamentais para que ele não seja falso, e também admitindo os limites desse recorte. Eu me lembro de que, quando fiz Os Sertões, queria trazer um sertão fora dos limites. Queria ir pra um lugar que não conhecia e voltar para falar desse lugar. Minha premissa era essa: “não conheço o Sertão. O sertão que Euclides da Cunha falou naquela época, eu quero falar agora”. Mas eu tinha um tempo, uma quantia, tinha limitações. O que me irrita, às vezes, é o repórter fazendo essas matérias como se fosse aventura. É a vida dos outros. Não suporto essas coisas, de viajar sete mil quilômetros, passar por vários perigos… Na verdade, você quer se capitalizar com a matéria, não tá falando sobre mundo. Havia toda uma construção midiática sobre o sertão, e não precisei ir tão longe. Quando cheguei em Ibimirim, tinha uma boate gay. Sabe? A gente não vive num mundo congelado, e às vezes a gente insiste em lidar com as coisas como se elas fossem congeladas. E, muitas vezes, o que causa estranhamento é que é muito parecido com a gente, e a gente queria que fosse diferente. Então, acho que temos que estar abertos à outras questões.

7- Seria desnaturalizar o discurso, desconstruir certas crenças?
A pesquisadora Sylvia Moretzsonh, que assina a apresentação d’O Nascimento de Joicy, tem um livro do qual gosto muito, Pensando Contra os Fatos, que trata da desconstrução de um senso comum. O senso comum, às vezes, usando um termo bem papo reto, pode lascar a vida de uma pessoa. Por exemplo, achar que travesti necessariamente é puta. Lembro-me de uma matéria que saiu certa vez no jornal daqui: “Três pessoas foram presas, uma mulher, um homem – não falava o nome das pessoas – e um menor de idade, que era travesti”. Esse era o lead da matéria. Eu conhecia o jornalista que escreveu e liguei, “Posso te fazer uma pergunta?”. “Se você vai manter na matéria que o menor é travesti, coloca também se o homem e a mulher são heterossexuais”. Porque a gente naturaliza mesmo e fica repetindo as coisas. A gente tem que parar de repetir as coisas, sem refletir sobre elas. E a pergunta mais maravilhosa do mundo que precisa ser sempre feita é: por que as coisas são como elas são?

8- Qual tua expectativa com relação à contribuição do livro e dos debates que poderá gerar?
Acredito que o livro contribui para se pensar no tipo de jornalismo que estamos praticando e no tipo de jornalismo que está em plena transmutação. Não existe um modelo único de jornalismo, são vários, todos eles fundamentalmente potentes. Existe, está posto, uma demanda social por uma produção jornalística de qualidade, existe uma demanda enorme de pessoas que são representadas precariamente no espaço midiático, e elas, é obvio, sublinham: “eu quero que falem sobre mim”, e, melhor ainda, elas podem se utilizar de vários mecanismos para falarem sobre si próprias. O livro, nesse sentido, abre para uma discussão sobre a desconstrução de um jornalismo que se pautou muito sobre uma verdade universal, uma ideia de verdade única, quando ela não existe. Ao mesmo tempo, vejo O Nascimento de Joicy como um elogio ao jornalismo. Eu ando bem cansada do desmerecimento concedido atualmente aos profissionais da área, que possuem um papel importantíssimo na construção da democracia.

< voltar para Literatura