“Arte não é profissão. Arte é devoção”, Raul Cordúla
De autoria da pesquisadora e curadora Joana D'Arc Lima, será lançado nesta quinta-feira (16) o livro Poéticas, que reúne memórias e obras do pintor
Postado em: Artes Visuais
Encarar a arte como um sacerdócio, que exige esmero e profunda dedicação. É assim que Raul Córdula define o seu ofício. Aos 72 anos, o paraibano, radicado em Olinda desde 1976, teve sua vida e obra revisitadas no livro Poéticas, que será lançado quinta-feira (16), às 19h, na Galeria Arte Plural. De autoria da pesquisadora e curadora de arte Joana D’Arc Lima, a publicação, dividida em duas partes (e texto bilíngue português-inglês), traz fragmentos que remontam não só à trajetória do Córdula artista, mas do crítico, do curador e do professor de história da arte, assim como sua atuação em movimentos/atividades culturais tanto na Paraíba quanto em Pernambuco, ao longo da segunda metade do (breve e conturbado) século vinte até os dias atuais.
“[Escrever esse livro] foi uma experiência marcada pelo encontro, com muitas falas, imagens, textos. Na impossibilidade de dar conta do todo de uma vida, optamos por um recorte temático que nos permitiu organizar e sistematizar a trajetória artística desse grande intelectual brasileiro. Na primeira parte, vemos as iniciações do artista no mundo das artes e da cultura na Paraíba, seu estado de origem. Ainda nessa seção introdutória, podemos conferir os movimentos realizados por Raul e de suas ‘poéticas’ narradas entre a figuração, a abstração e, sobretudo, a abstração geométrica. Tais deslocamentos foram realizados entre idas e vindas, de maneira não linear, pelas paisagens naturais das cidades de João Pessoa, Campina Grande, Recife e Olinda. Já, na segunda, dedicamos-nos a comentar, sumariamente, a série de arte postal proposta por ele em 1982, batizada de País da Saudade. Essa série, que tem como característica principal a produção coletiva em redes – que gera a possibilidade de co-autoria, da obra em constante modificação, mobilizou artistas de muitas geografias e permitiu-nos criar um inventário visual e poético da memória e da história cultural e política no Brasil, no período denominado pela historiografia brasileira de redemocratização”, contou-nos sobre a publicação Joana D’Arc que, atualmente, é diretora da Galeria de Arte Janete Costa e pós-doutoranda em História, na UFPE.
Apresentados nos idos anos 2000, durante a realização/organização do Salão Pernambucano de Artes Plásticas, a autora e o pintor mantêm, desde então, uma relação de amizade e profissionalismo. “Conheci Joana no período que ela tinha ingressado no mestrado e, interessado no seu trabalho como educadora, convidei-a para fazer toda a parte do educativo do Salão. Deu tão certo, que, recentemente, pedi para ela coordenar a edição de Poéticas“, disse Córdula, que acompanhou diretamente o processo de produção do livro. Além de duas cronologias dos afazeres e dizeres, o livro faz um mapeamento de textos escritos por Raul Córdula e sobre ele, levantados em seu arquivo pessoal, e apresenta trechos de uma série de entrevistas que logo, logo, estará disponível na internet. Segundo Joana, “essa é a primeira obra que conta a vivência de mais de 50 anos do pintor/curador paraibano nas artes visuais e que, como tal, teve como fio condutor a própria trajetória artística e poética dele”.
Aproveitando o lançamento de Poéticas, a equipe do Cultura.PE visitou o ateliê/residência de Raul Córdula, na cidade de Olinda, para conhecer mais de perto sua história, seu trabalho e colher suas impressões sobre a arte e todo o universo que a rodeia. Confira a entrevista:
1- O senhor ficou satisfeito com o resultado do livro?
Sou suspeito para falar, porém acredito que o público que se interessa por arte, no geral, vai gostar do conteúdo da publicação. Pois, o livro revela questões do meu trabalho que não são meramente estéticas, isto é, consegue desvendar o olhar poético e filosófico que lanço sobre o mundo exterior e, consequentemente, sobre as coisas ao meu redor, que, por sua vez, pensam/dialogam por si próprios.
2- Num dos trechos da obra, a autora Joana D’Arc Lima deixa entender que sua relação com o professor e multiartista Jomard Muniz de Britto foi fundamental para “suas futuras escolhas e na produção artística”. Como é que o senhor o conheceu e de que maneira ele influenciou sua trajetória?
Eu não sei se ele influenciou minha trajetória. Mantenho minhas dúvidas, em relação a isso. Ele influenciou minha vida como ser humano, como um amigo, que se aproxima do outro e que o faz ver as coisas de uma maneira diferente. Porém, eu o conheci em 1958/59. Jomard, assim como eu, era muito jovem – acho que sou uns dois anos mais novo do que ele (são seis, na verdade). Ele foi dar uma palestra na faculdade de Direito, da UFPB, sobre Carlos Drummond de Andrade, numa época que o poeta ainda era considerado uma vanguarda no Brasil. A partir desse dia, nos tornamos amigos. Logo depois disso, ele se tornou professor da UFPB, onde eu já trabalhava – dirigia os ateliês livres da Universidade, e nossa amizade ficou mais estreita, como é até hoje. Quando se envolveu com o Tropicalismo, ele lançou o seu segundo manifesto tropicalista, Inventário de um Feudalismo Cultural Nordestino, numa exposição minha aqui (em Olinda). Essa mostra tinha sido censurada na Paraíba, e foi trazida para cá. Vale dizer que o texto foi lido por Gilberto Gil, que, àquela época, estava por aqui com Caetano Veloso.
3- O senhor teve uma participação bastante atuante na formação e exibição das artes plásticas na Paraíba, nos anos 50/60. Esse período, embora tivesse uma repressão muito forte, foi muito rico no que diz respeito à produção cultural. O que vocês faziam para burlar a censura?
Dos anos 50 para o 60, existia uma efervescência cultural muito forte não só em João Pessoa, como em todo o Brasil. Mas o dia 1º de abril de 1964 pegou todo mundo de surpresa. Nessa época, estava fazendo um mural na Associação Paraibana de Imprensa sobre a morte de Pedro Texeira - o cabra marcado para morrer, líder da liga camponesa de Sapé (PB), assassinado em 1962, e eu tive que apagar tudo às pressas nesse dia. Não era filiado a nenhum partido político, mas havia em mim (e nos meus companheiros daquele período) um grande engajamento com as questões sociais do país naquele momento. E, de repente, com o Golpe, tudo isso foi cortado. Tornei a minha linguagem hermética para não poder ficar parado e sem trabalhar. Porém, dentro dessa áurea hermética, desse ocultismo da forma, eu comecei a criar outra poética que é essa que eu desenvolvo até hoje, e que em mim se consolidou. Isto é, um jeito de dizer sem dizer.
Laís Domingues/Secult-PE/Fundarpe

A forma geométrica é uma das características mais marcantes no trabalho de Raul Córdula
4- Além de ser um pintor respeitado pela sua produção artística, o senhor é reverenciado pela sua atuação como crítico. Primeiro vieram as pinceladas ou a crítica? Lembra-se de sua primeira exposição?
Costumo dizer que que arte não é profissão, é devoção. Entendo-me como pintor desde pequeno. Sempre desenhei e pintei. Mas sobre a questão da crítica é preciso fazer um parêntese. Essa palavra é muito enganosa. Crítica é, na verdade, uma especialidade da literatura que tem uma função de fazer uma análise e apontar as qualidades e os defeitos de uma obra apreciada. Com o tempo, foram surgindo a crítica da música, da pintura, do teatro e das mais diversas linguagens artísticas, ou seja, foi ficando cada vez mais especializada. Só que o artista-crítico de arte ocupa um papel muito complicado, já que ele, ao analisar os erros e acertos de um outro trabalho, estaria sendo anti-ético. Não me considero um crítico de arte. Eu acho que sou, no máximo, um cronista, uma pessoa que narra momentos históricos da arte. Quanto à exposição, claro que me lembro. A minha primeira mostra individual foi aos 17 anos, em 1960, lá na Paraíba.
5- Há quanto tempo o senhor vive em Pernambuco? O que lhe trouxe a morar em nosso Estado?
37 anos. Sempre morei em Olinda e, nessa casa, desde 83. Pernambuco é um buraco negro. Tudo o que está em volta, o Estado puxa para cá. Desde os anos 57/58 (quando voltei do Rio de Janeiro para Paraíba, com minha família), frequento os ateliês do Sítio Histórico olindense. Assim como diversos artistas que se instalaram aqui, acho que fui seduzido.
6- Quais são as poéticas que perpassam sua obra?
A arte é tão dinâmica, que eu não seria capaz de categorizar a minha obra assim tão sucintamente. Os artistas da minha geração romperam com essa ideia de que arte é só estética, estilo e técnica. Talvez, essa seja a principal contribuição da arte contemporânea para o mundo atual. Eu lido muito com geometria, com a arte geométrica, mas o livro consegue identificar várias facetas do meu trabalho. Não vejo uma síntese formal, porém o conteúdo é diferente, varia com o tempo, se aprofunda, amadurece. Na verdade, passei por vários momentos e, tudo isso, está presente na minha obra, através das apreciações do mundo que a gente vive.
7- Vamos falar um pouco sobre sua outra faceta profissional. Qual é a sua relação com o espaço acadêmico? Como o senhor se tornou curador/gestor de equipamentos públicos?
Eu era professor, não era acadêmico. Com todo o apreço que tenho aos meus amigos que ocupam esses cargos, nunca suportei a carreira acadêmica. Sinto que, nesses espaços, você se torna uma máquina de pensar e não um pensador livre. Isto é, ou você pensa dentro dos conceitos criados pelos outros ou você é rechaçado. Conheço pessoas fantásticas que tiveram fracassos absurdos na academia e, em contrapartida, um sucesso total como criadores/construtores de realidades novas. Respeito, mas comigo não dá. A questão da gestão/curadoria começou por acaso na minha vida. Quando eu estava coordenando o Núcleo de Arte Contemporânea (NAC) da UFPB, o Paulo Sérgio Duarte, que hoje é um curador importantíssimo em nosso país, que já coordenou, inclusive, bienais do Mercosul, precisou sair de lá para assumir uma pasta na Funarte. E, como não tinha que ninguém melhor do que eu para segurar a vela do barco naquele momento, comecei a realizar o trabalho que ele fazia. Desde então, tenho desempenhado atividades nessa área também.
8- A arte e, consequentemente, os artistas precisam estabelecer um diálogo com essas instituições?
Precisamos entender essas instituições como um lugar estratégico. Por exemplo, o NAC foi fundamental numa cidade, como João Pessoa, onde até hoje o olhar para artes é apenas contemplativo. E, num lugar onde existem nomes, como o Zé Rufino, Rodolfo Ataíde, Alice Vinagre, Chico Pereira, Martinho Patrício e tantos outros artistas contemporâneos, que trabalham dentro de uma linguagem atual, esses espaços oferecem régua e compasso não só a eles, como ao público, que passa a enxergar/perceber a arte com outro olhar.
9- Como o senhor vê a relação da internet com a arte? A web tem democratizado o acesso ao universo artístico?
Não tenho a menor dúvida. A internet é uma ferramenta que não nos permite mais compreender o mundo como antes (de seu advento). Eu tenho umas variações sobre esse tema que eu gosto bastante de comentar. A internet é como se fosse a ideia de uma vida sútil, de um mundo astral. Tudo existe, mas não existe. Tudo está na internet como representação. É uma nuvem. O que é uma nuvem, se não um depósito, que podemos acessar a qualquer hora e momento? A rede é democrática e nos possibilita, ainda que virtualmente, visitar museus, ateliês, sites de arte, etc. Agora, ela possui linguagem e estética próprias, que precisamos entender para operar sobre/dentro dela.
10- Qual é sua percepção do mercado da arte no Brasil, na conjuntura atual?
O mercado de arte nunca foi tão valorizado no Brasil e, ouso dizer, no mundo quanto agora. É uma área que já há algum tempo deixou de representar uma troca de objeto por dinheiro para se tornar um ativo que não se desvaloriza.
11- Para finalizar, gostaríamos que o senhor nos contasse um pouco sobre o Instituto Raul Córdula e as atividades que são realizadas pela instituição.
O Instituto Raul Córdula surgiu em 2010, por iniciativa da minha esposa Amélia Couto, que é fotógrafa, e do meu filho Cláudio Couto Córdula. Atualmente, não temos uma sede fixa, mas, em breve, pretendemos reunir num mesmo espaço minhas obras e todo o acervo bibliográfico que está aqui em casa sobre história da arte para consulta dos visitantes. A nossa instituição costuma fazer curadoria de eventos e exposições, como o Encontro de Crítica de Arte que fizemos recentemente na Caixa Cultural, além de editar publicações que resgatem/preservem minhas memórias. Inclusive, lançaremos, talvez no próximo semestre, um livro fac-simile dos esboços que empreendo antes da pintura dos meus quadros. A publicação, que conta com o incentivo do Funcultura, será batizada de Esboços/Esquetes e, além dos meus desenhos, trará um texto da jornalista pernambucana Olívia Mindêlo sobre meu trabalho.


